quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Sonho urgente

Algumas pessoas, quando falo do meu desejo (muito perto de se realizar) de morar sozinha, arregalam os olhos e me perguntam: Por quê?!?!?!?! Sempre exponho muito calmamente cada uma das razões e vantagens, mas hoje, se algum ser vivente me fizesse essa pergunta, eu responderia com uma pequena historinha, seguida por outra pergunta:

Imagine-se saindo do trabalho dez minutos mais cedo, louca para chegar em casa umas 19h30, tomar um banho e continuar trabalhando, desta vez nas suas atividades pessoais. Seu irmão, que sempre chega às 22h, só por hoje, no dia em que seu início de noite estava friamente calculado, resolveu passar mal no trabalho e chegar mais cedo. Urgh!! Mas em vez de estar de cama, está no computador e bufa quando você dá a ele a feliz notícia de que ele tem, no máximo, meia hora para dar o fora dali, sem pestanejar. Ele vai pra sala, aumenta o volume da tevê, com o objetivo mais infantil e claro do mundo de atrapalhar o sossego alheio (o meu, é claro) e sem meias palavras, leva o ventilador junto. Detalhe: está um puta calor, não tenho ar condicionado, refrigerado ou ventilador de teto. Tudo bem, tudo bem. Eu deixo a janela aberta no horário em que os pernilongos adoram entrar, sentar, tomar um café e só levantar as bundinhas da cadeira na hora em que meu sono está mais profundo pra zumbir no meu ouvido. Só que algum adorável vizinho do prédio de trás chegou animado, louco igual a mim, mas não pra tomar um banho e trabalhar, mas pra colocar o cd novo de alguma tatiquebrabarraco da vida pra tocar no último volume. Não dá pra reclamar. Ainda não são 22h da noite. Ainda é direito dele azucrinar los hermanos. Fecho a janela, transpiro aos tufos (pelo menos sauna emagrece), mas consigo me concentrar na leitura e revisão de um texto. Mas meu pai lembrou que tinha roupa pendurada no varal da janela do meu quarto (simmmm, é permitido pendurar roupa do lado de fora do meu prédio) e tenho que destravar a porta sob os protestos dele de “por que você trava a porta?”. Vai tentar explicar que leitura e revisão são atividades que requerem um pouco de paz, de silêncio, de compreensão alheia. Tá bom, prometo que na próxima encarnação eu vou nascer pedreira e não jornalista, e aí o barulho será uma parte inerente à minha vida profissional. Mas por enquanto, ainda preciso do mínimo de decibéis possível enchendo a minha paciência, algo perto ou igual a zero, de preferência. Alguém aí tem um protetor auricular? Ah, lembrei. Não era essa a pergunta que eu faria. Mas: feche os olhos, imagine-se exatamente nessa situação e me diga qual seria o seu sonho nesse momento? Seria morar sozinho, não seria?

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Mil tsurus e cem anos de solidão

Ler “Cem anos de solidão”, do imbatível Gabriel Garcia Márquez, romance que neste ano completa 40 anos, é como fazer mil tsurus (aqueles pássaros de origami): nossa vida parece se encher de prosperidade. Nós que pareciam indesatáveis começam a afrouxar, pequenas luzes começam a aparecer das frestas de portas que pareciam trancafiadas a sete chaves e até o coração parece bater em um ritmo mais compassado. Na verdade, acho que essas boas sensações já existiam antes de eu não conseguir passar da metade do livro por algumas duas ou três vezes. Mas minha teimosia era maior e meu olhar viciado demais para entender. Mas ao terminar o livro (e durante a leitura), novas perspectivas se abrem, nossa maneira de olhar o mundo se expande e aquilo, nunca dantes enxergado, agora se desvela ali, tão óbvio, como se sempre estivesse debaixo do nosso nariz. E estava.

A dica para quem não conseguiu chegar ao fim é: resistir à barreira que se coloca em algum momento do livro. A minha foi em umas tantas páginas entre a 200 e 300. Mas quando resolvi ultrapassar, a ansiedade por terminar logo foi de novo substituída pelo prazer que apenas cada nova linha consegue oferecer.

Agora, rumo aos mil tsurus. Na minha conta, só faltam 800.

domingo, fevereiro 11, 2007

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade