E fecham-se as cortinas
Longe da agitação e das filas dos shoppings, distante do clima cool que atrai os freqüentadores da Paulista, o grande atrativo daquele dia, no cinema que já foi considerado o mais luxuoso da América Latina, era o preço. Em que outro seria possível pagar uma inteira de seis reais em pleno sábado à noite? O filme era Olga. A platéia pequena, mas diversa. A sala localizada no sexto andar, o acesso por um elevador antigo, assustador e, lógico, sem ascensorista. Perdemos os primeiros 15 ou 20 minutos de tela. A sessão já tinha começado. Mas o atraso era outro atrativo. Em que outro cinema poderíamos virar a sessão para assistir ao começo do filme ou mesmo revê-lo, sem precisar se esconder e ainda pagando só uma entrada? E o melhor, a três reais, com carteirinha de estudante?
Do filme eu não lembro detalhes. Fiquei tempo demais ocupada em observar uma figura enigmática que de tempos em tempos levantava da poltrona no meio da história em busca de um novo lugar. No começo, foi irritante. Mas depois, quase caí na tentação de acreditar na tal história da agulha besuntada de sangue deixada por aidéticos em poltronas de cinemas para contaminar os infelizes que ali sentassem.
No intervalo entre uma sessão e outra, o ar de abandono daquela sala e daquele prédio, assim como de tantos da região, cresceu. Com nada pra fazer e uma certa apreensão, a solução era ir ao banheiro (outro cenário de filme de terror) ou bater papo com o simpático moço da projeção. Tudo pronto para a próxima sessão e descobrimos que não éramos os únicos a repetir o filme. Com os mesmos passos lentos com os quais zanzou misteriosamente na sala, das cenas mais monótonas às de maior sofrimento e tensão, retorna a tal figura enigmática. Minha companhia, que até então se mostrava 100% tranqüila, empalidece. Só fui entender o porquê na saída, já no metrô. Uma palavra estava escrita com sangue fresco na parede do banheiro masculino: SIDA, sigla brasileira da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, mais conhecida pela sigla em inglês, Aids. Um frio me percorre a espinha com o comentário: “eu acho que quem escreveu foi o cara estranho que não parava de andar durante o filme.”
Estaria ele espalhando agulhas contaminadas? Não faço a menor idéia. Só sei que nunca mais voltei lá. Só de pensar nessa possibilidade, meu amigo se apavorava. Agora, não precisa mais. Desde o último dia 10, o Cine Ipiranga, bastião cinematográfico do centro de São Paulo, caiu no mais absoluto silêncio e chegou ao fim depois de quase 62 anos. Nada se sabe, ainda, sobre o seu futuro. Para ser reformado, é necessária uma autorização da prefeitura, já que o imóvel é tombado pelo Patrimônio Histórico do município. E sem uma bela revitalizada, reabri-lo não seria uma boa idéia. Os funcionários perderam seus empregos. Os assíduos e misteriosos freqüentadores perderam seus acentos. Os desavisados e curiosos perderam a chance de entrar, se encantar ou decidir não voltar nunca mais. E o centro de São Paulo perdeu parte da sua história.
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