sexta-feira, novembro 12, 2004

No ritmo da maré*

Em Apeú-Salvador, ilha do litoral nordeste paraense, a pesca artesanal sustenta a economia, as relações sociais e norteia o imaginário de uma população que vive entre a vazante e a preamar O cotidiano dos habitantes da vila de Apeú-Salvador divide-se em antes e depois da maré. Logo cedo, quando os pescadores saem para a lida diária, sabem que farão uma parada para caminhar em alto-mar. A expressão não é uma figura de linguagem. As marés da região, de tão abruptas, na sua vazante deixam a mostra à milhas de distância da costa imensos bancos de areia, as chamadas “croas”, onde os barcos permanecem atracados até que a preamar os leve de volta à ilha, no meio da tarde. De todas as ilhas que estão no estuário dos rios Gurupi e Piriá, Apeú é a que fica mais distante do continente. Antes desse movimento que ocorre a cada seis horas, preparam o almoço ou “avuado” na linguagem local, em fogueirinhas que reforçam as características rústicas do lugar. Os peixes, geralmente caícas, douradas ou sardinhas pirombetas, são assados na hora. A jornada de doze horas começa às três da madrugada e termina às três da tarde. O conhecimento profundo dos horários de cheia, sem necessidade de relógio, do momento adequado de puxar a rede e a habilidade em detectar cardumes sem o auxílio de equipamentos, desmistificam a idéia de que a pesca artesanal é uma atividade fácil, que não exige esforço físico nem intelectual. O corpo e a sabedoria começam a ser delineados na infância. A musculatura bem definida e as mãos grossas e calejadas pelo atrito com a linha revelam a força empregada para puxar os espinhéis e as extensas redes de pesca. Algumas medem mais de mil metros, como as utilizadas por José Carlos Viega da Silva, o Zeca, 31 anos, pescador desde os 10. E as brincadeiras mais simples na preamar ensinam as crianças sobre os períodos ideais para brincar de “surfe”, jogar futebol na praia ou lançar seus barquinhos de brinquedo, de produção própria, na água. Os principais instrumentos de trabalho da pesca artesanal são as redes de fios de algodão ou nylon, as malhadeiras de diversos tipos e tamanhos, tarrafas, espinhéis, linha de mão e os currais. Aos oito anos de idade, os meninos passam pelo seu primeiro rito de passagem. Acompanhar o pai ou os irmãos mais velhos à “pesca de fora”, em alto-mar. É a prova da resistência a longas horas longe da terra firme. Jonathan dos Santos, 10, o Parentinho, passou no teste. Enquanto observa, assume a função de servir de contrapeso no barco. É na infância que os garotos passam a ser conhecidos mais pelos apelidos que pelos nomes, atribuídos pela semelhança a animais, objetos ou situações engraçadas, como Zé Peixinho, Baiacu, Papudinho ou “Pirigoso”. No caso de Jonathan, é por ser o membro mais jovem da embarcação tripulada só por homens da mesma família. Os que forem pegos pela embriaguez marítima, enjôos e mal-estar em excesso, são reprovados. A água que se acumula no fundo da canoa está envolta em magia. Ao ser passada no rosto, deve amenizar ou eliminar o “porre”. Se o efeito for contrário, estaremos diante de um pescador de beira, como Zeca, um agricultor como Manoel Roxo (apelidado com a coloração causada pelas náuseas) ou um barqueiro, carroceiro, pedreiro, entre outras profissões que não exijam a navegação diária. Vindo do Maranhão, Zeca tentou trabalhar nas frotas motorizadas em viagens com destino ao Amapá, mas não se adaptou à violência do mar do norte e a exploração dos “patrões”. Alex, de 11 anos, não chegou a ser avaliado. Revelou precoces habilidades no corte de madeira e na colheita do murici (Malpiguiáceas) e do caju (Anacardium ocidentale), onde auxilia a família chefiada pelo pai, Manoel Roxo, exemplo vivo da força da pesca no imaginário local. O sonho do ex-pescador preterido no exame é ter um barco. Nas horas vagas, Alex anda a cavalo, mostra-se um bom nadador, torcedor fiel do futebol jogado pelos garotos da vila e não escapa das influências da televisão: é fã do ator Jean Claude Van Damme. O aparelho já demarca território no vilarejo, penetra no cotidiano local e aos poucos estabelece padrões de comportamento. O limite de horário para brincar é o final do capítulo diário da novela das oito. O sinal é dado pelo grande fluxo de pessoas que começam a retornar da casa dos vizinhos, já que pela falta de condições econômicas os aparelhos de tevê são privilégio de poucos. A ausência de eletricidade também não é problema. Os eletrodomésticos existentes funcionam com energia produzida por motor gerador. A pequena Marcele, de 6 anos, irmã de Alex, também já auxilia na colheita. A tentação de classificar a participação das crianças em “serviços de adulto”, de trabalho infantil sem entender como as sociedades primitivas se estruturam, pode ser uma conclusão superficial. A produção econômica das famílias de Apeú-Salvador é composta por várias partes em que cada membro, independente da idade, exerce um papel fundamental para a manutenção da estrutura familiar. Em comunidades de origem ribeirinha e forte influência indígena quase não há diferença entre a forma de aprendizagem, o conhecer e o fazer. As tarefas possuem um caráter de treinamento para as atividades que serão exercidas no futuro. Os meninos iniciam-se nas mais várias modalidades de pesca e na agricultura. E as meninas ajudam as mães na limpeza da casa e do pescado, e na confecção das redes. Brincar de “casinha”, entretenimento feminino, também é o preparo para um cotidiano onde a ausência da figura masculina é constante, entendida na brincadeira como o tempo em que o pai ou marido passam no mar. No fim do dia, a brincadeira mais comum entre os meninos é a pira, espécie de pega-pega com dois times. De volta ao litoral Membros de um ecossistema que começa a entrar em desequilíbrio pela ação da pesca predatória, os habitantes de Apeú e de outras vilas de realidades semelhantes como Tamaruteua, Marapanim, Vigia e Maracanã, mantêm-se firmes em seu trabalho nos períodos abastados ou de escassez. Mesmo sujeito às dificuldades impostas pela sazonalidade, os planos de Zeca são fixar as bases. Pretende comprar o rancho arrendado do agricultor Manoel Roxo, no Muro Branco, no qual mora com a mulher Nadir. Ranchos são residências ou locais de trabalho construídos a uma certa distância do solo para não serem invadidos pelas águas da preamar. O período de safra corresponde ao inverno amazônico, de janeiro a junho, marcado pelas chuvas abundantes que levam os cardumes para as proximidades da costa, o que facilita a captura na beira. Os ranchos começaram a ser construídos na década de trinta, início da migração do interior para o litoral. A partir dos anos cinqüenta, com o esgotamento e a proibição de algumas modalidades de pesca nos rios, os trabalhadores deixaram de passar apenas temporadas na costa. Levaram as famílias e ficaram de vez. As tribos de índios tupinambás, que por um processo de caldeamento e miscigenação, foram expulsas da região litorânea, batizada no Pará de Zona do Salgado, voltam, dessa vez como mestiços, ao seu lugar de origem. A influência ribeirinha e indígena na formação das comunidades que vivem da pesca no litoral paraense as diferencia dos jangadeiros do Nordeste, dos caiçaras do sul e do sudeste e de outras populações da costa brasileira com tradição marítima mais prolongada. Práticas antigas são mantidas por Zeca e João Soares, outro pescador de beira que vive com a família em um rancho de três andares. Depois de pescar, eles limpam, salgam e conservam o peixe para consumo próprio e para comercialização aos revendedores peruanos que passam pela região. Três horas de caminhada separam o Peru da ilha paraense, quase divisa com o Maranhão. O sustento dos pescadores artesanais é ameaçado pelas embarcações que utilizam redes de arrasto para captura de camarão cada vez mais próximas da costa. O espaço dos pequenos produtores é invadido por essa ferramenta altamente predatória e prejudicial à biodiversidade. Peixes capturados são devolvidos ao mar em sua maioria mortos. Segundo dados de órgãos do setor, para cada quilo de camarão aproveitado, são desperdiçados sete quilos de pescado. Entre eles, muitas vezes, espécies valiosas como o camurim (Centropomus undecimalis) e a pescada amarela (Cynoscion acoupa). A carne deste peixe, repassada na primeira etapa da venda a 2,5 reais, chega a 6 reais no Ver-o-Peso, o grande mercado de Belém. E a “grude”, a bexiga natatória (órgão interno do animal), produto de exportação usado na composição de medicamentos, cosméticos, filmes fotográficos, instrumentos musicais e colas, vale 110 reais o quilo. Os produtos da pesca em Apéu Salvador são comercializados por pelo menos quatro categorias de intermediários: o geleiro (conserva o peixe), o comprador de grude, o de camarão, e o marreteiro ou patrão - fornecedor de instrumentos de trabalho ao pescador em troca de parte da produção. Essa organização é chamada de sistema de aviamento, modalidade de crédito antiga que regula quase todas as relações produtivas do setor primário da economia amazônica. Aqui, as dívidas têm um significado diferente das geradas em transações com bancos. A estrutura do sistema baseia-se na reciprocidade e na obrigação de retribuir não só bens materiais, mas valores como respeito e confiança, o que dispensa a necessidade de contratos formais, mas aprisiona o aviado a uma dívida eterna. “A gente trabalha com compromisso, damos a nossa palavra e trabalhamos direto para conseguir a ajuda do patrão”, diz o pescador Carlos Xavier, 25. A luta contra os obstáculos se dá sob a forma de superstição, o que tornou a religião a principal aliada deste trabalho que não exige só experiência. É preciso também contar com a sorte e com a ajuda de Deus, acreditam os pescadores e, principalmente, suas mulheres. A crença está representada nos cultos da igreja evangélica, nas imagens de santos católicos, objetos de decoração e devoção nas residências ou na tradição das santas missões eucarísticas, evento que tem seu ponto forte a cada três décadas com a visita de padres missionários. Lourdes Furtado, pesquisadora titular do Museu Paraense Emilio Goeldi e professora da Universidade Federal do Pará, antropóloga que há mais de trinta anos dedica-se ao estudo das relações “homem-mar”, explica que assim como existe a tendência em desenvolver o turismo nas vilas que vivem da pesca, é grande a propensão dessas comunidades em se fortalecer nas tradições locais. No caso de Apeú-Salvador, a segunda premissa é ainda mais forte. A falta de estrutura turística e estradas pavimentadas atrai, em escala minúscula, somente os afeitos ao turismo de aventura ou pesquisadores. Para Furtado, a modernização nem sempre responde aos anseios da população ou representa a solução para os problemas locais. E a transferência de tecnologias mais modernas para substituir as tradicionais pode ser prejudicial à população, quando feita sem pesquisa e planejamento. “Claro que a expectativa de melhoria de vida é fato, mas para alcança-la é preciso unir esforços entre ciência, tecnologia e gestão a serviço do desenvolvimento regional.” O acesso a esse paraíso inexplorado chamado Apeú Salvador só é possível depois de uma viagem de barco de cerca de quatro horas a partir de Viseu, município às margens do rio Gurupi, a 320 quilômetros de Belém. Mas o esforço parece valer a pena. No percurso, o viajante é acompanhado por uma revoada de guarás e pela exuberante paisagem dos manguezais. Modalidades de pesca em Apeú-Salvador Malhadeira - rede que prende os peixes pelas guelras nas malhas. Os tamanhos e tipos variam de acordo com a espécie a ser capturada. Entre os tipos de malhadeira, a mais utilizada em Apeú é a tainheira, confeccionada com fios de plástico para capturar peixes médios como tainha (Mugil brasiliensis), bandeirado (Felichthys marinus), gó grande (Cynoscion virescens) e peixe pedra (Ceniatremus luteus). Tarrafas - rede em forma de cone que é lançada da proa da embarcação e fica presa à mão do pescador. Ela se fecha quando é içada, trazendo os peixes presos nas malhas. Espinhel - linha extensa com anzóis presos a uma linha secundária, presa às duas extremidades da embarcação por pequenas âncoras e que flutuam presa a bóias. Dependendo do tamanho dos anzóis, chegam a capturar espécies de valor comercial como o mero (Promicrops itaiara) e a dourada (Brachyplatystoma flavicans). Curral - armadilha fixa, em forma de cerca de varas de madeira, armada em beiras de praia ou bancos de areia no meio do mar e de frente para a maré vazante, com cerca de vinte a trinta metros de extensão. Possui uma abertura por onde os peixes entram e ficam presos até a hora da despesca. Na beira - pescarias feitas nas margens com munzuás (instrumento de forma oval aberto nas extremidades), tarrafas (redes circulares) e linha de mão. * Esse texto foi escrito em parceria com o fotógrafo Maurício de Paiva (artista dotado de grande sensibilidade), depois da sua viagem a Apeú Salvador. Tamanho foi o seu encantamento por essa ilha abençoada por Deus, que ele voltou com fotos maravilhosas e cheio de idéias na cabeça. A principal delas, era publicar uma matéria na National Geographic. Me propus a ajudá-lo na organização das informações e na idealização de algumas sugestões de pauta. O trabalho rendeu tanto, que acabei escrevendo essa materinha, com base nas histórias que ele me contou, na tese de mestrado da antropóloga Isabel e num bate-papo com a também antropóloga Lourdes Furtado. O texto transformou-se numa grande pauta pro Maurício e numa grande satisfação e aprendizado pra mim. A National mandou o rapaz e um repórter pra Apeú recentemente, e o resultado está na edição deste mês da revista. Viva!